quinta-feira, 28 de outubro de 2010

De Cara

(figura extraída do livro 'Morte e Vida Severina', João Cabral de Melo Neto)


De Cara


Não é nada,
Só essa cara amarela
do dia que passa
Corrói minha calçada
esse sol
que não tem mais nada a fazer
do que ficar esquentando minha cabeça.
Não é nada,
É só essa chuva fina
esse dia frio
Essa cara azul
de quem venta
Que não tem moral
pra me cobrar sorrisos.
Não é nada,
É só o meu caro vizinho
que anda virado
e não pára,
e resolve discutir na madrugada,
e atira coisas no chão,
na parede, no teto,
e dá descarga
às seis da manhã.
Não é nada,
É só um passado pesado
atrelado feito mordaça
É só um futuro negro sem cara
erguido sobre uma base quebrada.
Não é nada,
É só ter que acordar todo dia
e viver uma vida emprestada
e pagar juros sobre juros
pra se deteriorar na rotina
ou numa cara garrafa de cachaça.
Não é nada,
É só a minha cara amarrada
e meu senso-crítico
que me impedem de ser aceita
e sorrir pra qualquer mancada.
Eu não acho a vida perfeita
e não acho a vida sem graça,
mas se a vida tivesse corpo,
com toda certeza,
já teria levado
um tapa na cara!



Isa Blue

2 comentários:

  1. Muito bom!
    Não é nada
    É a poesia
    com o tom
    ácido da Isa
    É um Blue
    É madrugada
    Não é nada
    É minha amiga
    Rimando briga
    É poetisa zangada.

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  2. muito legal, isa.

    isso aí é portinari, 'retirantes'.

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